Um dia na
Frente de Batalha
O terror era real. Por
onde quer que olhasse só via dor, sofrimento, horror por parte de homens que
partilhavam a trincheira comigo. As pragas começavam a atacar devido, muito
provavelmente, à falta de higiene que ali havia. Não tinha notícias da minha
família há cerca de um ano e a dor no peito, que no caso pode ser chamada de
saudade, fazia-se sentir cada vez mais forte a cada minuto que passava. Os sons
de artilharia e de bombas a detonar assombravam-me a mente e não sabia quanto
mais tempo iria aguentar viver rodeado de óbitos. Lembro-me de quando era mais
novo, brincar com os meus pequenos soldados de plástico na maior inocência, mal
sabia eu do pânico que aí vinha.
O sereno da noite
tentava acalmar-me, mas sem sucesso. Estava agitado, não conseguia pregar olho.
Lágrimas rolaram na minha face quando me lembrei do quanto era feliz em casa,
com a minha família. O choro silencioso conseguiu cansar-me o suficiente para
finalmente adormecer, e embora tenha acordado pelo menos três vezes, consegui
descansar o mínimo.
Acordei
com alguém a pontapear-me e a gritar “Acorda!” o que me fez alarmar. Mais um
dia. Levantei-me rapidamente e pus-me no meu posto que havia sido
estrategicamente posicionado. Peguei na minha metralhadora, que apenas me
trazia más memórias. Eu havia morto gente com aquele pedaço de pólvora e metal.
Eu havia morto alguém muito provavelmente inocente. Eu havia acabado com um
membro de uma família. E tudo isto porque Portugal queria proteger as suas
colónias africanas.
Subitamente, ouvi algo
que se assemelhava a um tiro. Rapidamente, deixei quaisquer pensamentos de lado
e concentrei-me na metralhadora. Um grupo de aproximadamente 20 homens
aproximava-se. Íamos ser atacados. Um dos homens na trincheira disparou, dando
sinal para todos fazermos o mesmo. Senti o chão a vibrar e um estrondo
ensurdecedor. A bomba que detonou levantou imenso pó, o que não me permitia ver
os atacantes. As minhas botas estavam gastas por, provavelmente, passar tantos
dias a cavar mais trincheiras. Peguei numa bomba e atirei-a na esperança de
acabar com os vivos que nos queriam matar, e com sucesso. Soltei um suspiro de
alívio. Escapei outra vez à morte.
Após a tentativa de
atentado, apenas continuámos a cavar e a prolongar a trincheira. Matar, naquele
ambiente, já era normal. Alimentámo-nos com o pouco que havia e trabalhámos o
resto do dia.
A lua já pairava no
céu, e, tal como na noite anterior, os remorsos apoderaram-se do meu ser.
Assombrado por estes pensamentos, fui apenas dormir. Pensar no assunto não
valeria a pena. Embora me sentisse o pior ser humano por matar, decidi
descansar.
Barulhos de tiros
faziam-se ouvir na noite que antes era calma. Levantei-me, peguei na minha arma
e apontei aos atacantes que aí vinham. Pus-me no meu posto, fiz mira, e antes
que pudesse concluir qualquer ação, senti algo que se assemelhava a uma aguda
dor de cabeça. O sangue escorreu lentamente e, aí, apercebi-me: acabou.
Finalmente acabou!
Crónica
de um repórter de guerra em La Lys
Tinha acabado de chegar ao vale da ribeira de La
Lys, quando recebi a notícia que o meu irmão João, que combatia na frente
balcânica, tinha falecido com pé-de-trincheira. Quis chorar, e acredito que no início
várias lágrimas caíram, mas não podia. Teria que fazer o meu luto mais tarde,
talvez só quando a guerra acabasse.
Entretanto, um soldado francês acabara de dar
entrada no hospital de campanha. O seu nome era Louis e tinha sido baleado.
Tinha começado a tratar do seu ferimento, quando um barulho horrível soou. Olhei
para Louis e ele disse-me que era, provavelmente, um avião que só nos estava a
sobrevoar. Não podia ele estar mais enganado. Era, realmente, um avião de
guerra, mas, assim que aterrou, surgiram soldados armados até ao pescoço, e começaram
a disparar sobre os alemães. Encolhi os ombros e voltei a tratar do ferimento
de Louis. Era só mais um dia igual aos outros, apenas num sítio diferente, com
soldados diferentes, com armamento diferente.
Quando a Itália se juntou aos Aliados, muitos
disseram que a guerra estaria para acabar em breve, mas desde que a Rússia
assinou a paz com a Alemanha, que eu tenho as minhas dúvidas sobre o fim.
A verdade é que o que eu mais temia
aconteceu: habituei-me ao som dos tiros.
A guerra já dura há quase quatro anos e não
há sinais de que esteja para acabar. Só queria que isto acabasse. Há cada vez
mais órfãos, viúvas e mães sem filhos. E para quê? Para decidir quem fica a
dominar a Europa? Para ver quem fica com as colónias? Será que estes milhões de
vidas perdidos só valem isso?
Este é o assunto que ocupa a minha mente
enquanto enrolo gaze no braço de Louis e penso no meu falecido irmão.
Beatriz Sousa Paixão
“A Humanidade é louca.
Tem de ser
louca para
fazer o que
está a fazer.
Que
massacre! Que cenas
de horror e
carnificina!
Não
encontro palavras
para
exprimir as minhas
emoções. O Inferno
não
deve ser
tão mau. Os
homens são
loucos!”
Escrito num
diário por um tenente francês em Verdun, morto por um projétil de artilheria, a
23 de maio de 1916
As solteiras eternas
e os vizinhos perdidos
Chamo-me Marie e pertenço à família Laurent. Tenho
dois irmãos, Francis e Claude, e uma irmã, Claire, que está casada com um
alemão que vem de perto da Colónia (na Alemanha). São todos mais velhos. Éramos
camponeses e habitávamos numa pequena quinta junto da aldeia Lavoût, perto da
fronteira alemã. Éramos uma pobre, mas feliz família, até o ano 1914. Na
altura, tinha 14 anos, quando a Europa entrou em Guerra.
Foi também através do casamento da minha irmã com
o alemão, que estabelecemos uma relação familiar com a cultura alemã. Tínhamos,
também, vários contactos cordiais com as pessoas de aldeias alemãs próximas da
fronteira, nossos vizinhos. No tempo da colheita, ajudávamo-nos um ao outro.
Muitas vezes, comíamos juntos, e, quando fazíamos isso, a cozinha estava cheia
de gargalhadas. Mas com a mobilização e o início da Guerra, tudo mudou de
repente. Amigos passaram a ser inimigos involuntariamente.
A Guerra era o resultado de alianças políticas e
militares, com as quais não tínhamos nada a ver. Preocupámo-nos com a vida do
meu cunhado e dos meus irmãos, dos nossos vizinhos alemães, e do povo francês
quando os meus irmãos e o meu cunhado foram chamados às fileiras. O meu pai,
por sorte, não foi porque sofria de tuberculose.
Eu e a minha mãe tivemos de fazer todos os
trabalhos sozinhas. Manter a quinta num estado “aceitável” e tratar dos campos.
Muitos dos campos não conseguíamos cultivar sozinhas porque eram demasiados, e
daquilo que conseguíamos extrair, grande parte era retirada pelo governo e
enviada para as fronteiras de luta para alimentar os soldados. Nas outras
aldeias ao nosso lado houve ocupações de soldados alemães que tinham um
comportamento impertinente, enquanto que a Lavoût só veio, uma vez, um general
que nos declarou a quantidade de alimentos que éramos obrigados a entregar. A
nossa alimentação limitava-se, então, aos poucos ovos das nossas galinhas,
alguns legumes da horta (principalmente batatas e nabos) e, raramente, carne.
Com o tempo, nem eu, nem a minha mãe escapámos da perda de peso e o meu pai não
conseguia recuperar a saúde, permanecendo sem forças na cama. Com essas
condições, começaram tempos muito duros para nós, e para todos os outros.
Às vezes, atingia-nos uma carta do Claude ou do
Francis, e, cada vez que abríamos um postal, temíamos que fosse a notícia da
morte de algum deles. Mas, felizmente, fomos sempre “desiludidas”. Francis,
mesmo estando mais longe de casa do que Claude, escrevia mensalmente, por um
motivo desconhecido era mais frequente chegar uma carta de Francis do que do
seu irmão.
Na última carta ficámos a saber de Claude que se
encontrava na batalha de Verdun. Ele falou da situação em que se encontrava,
que tinha passado meses numa trincheira, cheio de medo, cheio de fome e sem
esperança de algum dia voltar para casa, mas que não havia um dia em que não
tenha pensado em nós. Mal a minha mãe tinha acabado de ler a mensagem,
vieram-lhe as lágrimas.
Depois dessa carta, nunca mais ouvimos nada de
Claude.
No fim da guerra, em 1918, recebemos uma visita do
seu companheiro que afirmou que, provavelmente, Claude tinha sido atingido por
uma granada, mas a sua chapa de identidade não tinha sido encontrada. O seu
nome não foi então registado em nenhuma pedra sepulcral, mas houve um jazigo –
O “Jazigo dos soldados desconhecidos”.
Na altura, estimou-se que por cada mês de batalha,
em média, teriam ocorrido 70000 baixas. De acordo com as estimativas
contemporâneas, morreram 377 231 homens do lado francês e 337 000 do lado
alemão na Batalha de Verdun.
O meu outro irmão, Francis, voltou da batalha de Chemin
des Dames, no Nordoeste da França, em 1918. E, pouco depois, também
regressou o meu cunhado.
Francis casou em 1919, mas nunca mais foi um homem
de muitas palavras, e por mais que eu insistisse, nunca falava sobre a guerra.
Suponho que ele não quisesse recordar os seus tempos mais negros e tivesse
receio de, ao falar neles, piorar os seus, já existentes, pesadelos que o
perseguiam todas as noites.
Da nossa aldeia partiram 26 homens para a guerra,
e só 8 voltaram, dos quais muitos profundamente traumatizados. Não só deste,
mas também do outro lado da fronteira, houve muitas mortes. Tendo lutado amigos
contra amigos e vizinhos contra vizinhos, por serem de lados diferentes da
fronteira.
Desde a Guerra, nada voltou a ser como era. Quando
um francês passava por um velho amigo alemão do outro lado da fronteira, ambos
não se conseguiam olhar nos olhos porque sofriam ao ver o outro. Recordavam os
gritos agudos que ambos provocaram no outro lado da fronteira, e não se
conseguiam perdoar a si próprios porque sabiam que os perdidos nunca mais iriam
voltar. Os perdidos, que durante anos tinham vivido na aldeia ao lado, que
todos os dias tinham encontrado nos campos quando iam trabalhar e que eram seus
vizinhos desde nascença.
É o sentimento penetrante da culpa de que nenhum
dos soldados, muitos deles só temporários, se livrará para o resto da vida.
E eu? Tal como a noiva do Claude e muitas outras
mulheres, fiquei solteira para o resto da minha vida. Quem não tivesse apanhado
um dos homens que sobraram, não tinha qualquer “chance” de um dia casar, porque
não havia, simplesmente, mais homens.
Nunca irei esquecer aquele tempo horrível, o tempo
da Batalha de Verdun, o tempo da 1ª Guerra Mundial, a época dos gritos
mortíferos.
Crónica baseada em factos reais,
mas elaborada com ideias próprias.
Rosa
Bauer
Na Batalha de La Lys
É um massacre a batalha de
La Lys. Esta batalha dá-se na Bélgica, na região da Flandres (norte da Bélgica),
e é massacre não só para os soldados que batalham, como para as suas famílias.
Viúvas, órfãos, filhos que não chegam a conhecer os pais, muitos soldados
mortos, feridos, inválidos, mantidos prisioneiros pelos inimigos…
Os soldados estão cansados
física e psicologicamente, pois é esse o objetivo das trincheiras. Os ataques
de gás e de granadas são constantes, as condições são péssimas, as necessidades
são feitas nas trincheiras, o que faz com que haja muitas doenças e infeções, uma
das razões para que vários homens morram. Os equipamentos não são suficientes,
tal como a falta de máscaras de gás que nem todos os soldados têm acesso, bem
como as suas botas, que, quando se estragarem, dificilmente terão acesso a
outro par.
Alguns homens não faziam
ideia do que era uma guerra e do esforço que era estar em constante stress, uma
vez que os soldados pensam quando chegará a sua morte. Para além disso, a
Alemanha tem um forte exército e um objetivo: eles querem anexar uma grande
parte da Bélgica, norte de França, e uma parte da Polónia, inclusive.
Ontem, na madrugada de 9 de
abril de 1918, as tropas portuguesas foram esmagadas por uma força alemã muito superior, o que constituiu o
maior desastre militar português depois da batalha de Alcácer Quibir, em 1578.
Esta ofensiva ficou conhecida como “Georgette”, foi montada por Erich Ludendorff e visava a tomada de Calais e Boulogne-sur-Mer.
Todos nós lamentamos a morte dos que nos defendem e representam nas
frentes de batalha.
Tobias Furtado
Baptista
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